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Diálogo Iberoamericano

Núm. 13 / enero-febrero 1998. Pág. 14

O homem a preço de custo

Raquel Moysés (Agecom). Universidade Federal de Santa Catarina

Vende-se, via Internet, DNA de indios caitiana e surui, da Amaz“nia. Aposta futurista? Manchete sensacionalista de jornal? Não. A substância mais íntima do organismo humano, o ácido desoxirribonucléico, molécula que contém a informação genética, está sendo comercializada por uma empresa biotecnológica da Universidade de Chicago. A denúncia, do professor e pesquisador Volnei Garrafa, caiu pesada sobre o público que lotava o Auditório da Reitoria na noite da última sexta-feira de agosto. Nem o talento do conferencista e a sua virtude de provocar o riso falando de coisas muito sérias, conseguiram evitar a sensação de viver um pesadelo.
Autor, com o italiano Giovanni Berlinguer, do livro "O mercado humano" -Estudo bioético da compra e venda de partes do corpo -Garrafa conseguiu em uma hora de conversa alimentar reflexões para uma vida. Mas o que ele, e outras pessoas reunidas durante o I Congresso Brasileiro de Bioética e Direito, querem, é mais do que fazer refletir. Querem agir, formar redes permanentes de reação contra o mercado tecnológico que, no final do século XX, não está mais preocupado só em explorar a força de trabalho do homem, agora se apropria do seu corpo, até na sua essência mais íntima.
Garrafa não tem dúvida de que o novo motor de impulsionamento econ“mico do mundo é o biotécnico. Tanto que hoje, não é mais correto dizer "a peso de ouro", mas "a peso de clorofila". Um grama de clorofila bruta já custa 700 dólares. O mesmo peso da substância purificada vale 10 mil dólares.
Também autor de livro "Contra o monopólio da saúde", Garrafa considera que o Brasil vive um paradoxo insustentável do ponto de vista ético. "Este país, que é a nona nação mais rica do mundo, conta com as tecnologias médicas mais avançadas, com doenças dos países mais ricos e, ao mesmo tempo, vergonhosamente, convive com o sarampo. E o Ministério da Saúde não possui vacina contra ele. é uma falta de ética insustentável", dispara. é revoltante, insiste, "conviver com crianças e idosos abandonados em baixo de pontes, morrendo de fome ...".
Tudo isso, num mundo em que a ciência aposta que, em poucos anos a longevidade será de 120 a 130 anos. "Somente alcançará esta idade quem puder pagar tecnologia sofisticada, pois os resultados da ciência também não são democraticamente distribuídos," avisa Garrafa. Ele não tem dúvida de que a maior ameaça para os seres humanos é a monetarização da vida.
Motivos para tanta apreensão não faltam em um país, "que escancarou suas portas com uma lei de patentes condescendente votada por um Congresso medíocre". E que cobre um rombo de 30 bilhões de um Banespa, enquanto o orçamento para a saúde anunciado não chega a 15 bilhões. "E ainda querem privatizar a medicina com as golden cross da vida que exploram os velhos", bombardeia o professor.
Para Garrafa já passou da hora deste país começar a discutir saúde corajosamente, e não cinicamente, como acontece com o caso do aborto e aconteceu com a lei da doação presumida de órgãos. E lembra Rui Barbosa, quando disse na Oração aos moços, que eqüidade significa tratar de forma desigual aos desiguais. A própria OMS já sepultou o slogan "Saúde para todos no ano 2000", substituindo-o pelo tema da eqüidade.
"A vida só vale ser vivida com qualidade", insiste Garrafa, sonhando um futuro menos sombrio para o ser humano. E a bioética, para ele, aponta para lutas por uma vida melhor para pessoas e coletividades. Este movimento cultural, para ele, tem que trabalhar, obrigatoriamente, com base no pluralismo moral, religioso, social, político. Mas, ética, adverte, não é quantitativa nem pode ser importada acriticamente. E o caminho, não é trabalhar em cima de códigos casmurros, de proibições, nem do endeusamento ou demonização do cientista. Com o avanço da ciência hoje, o grande dilema do cientista não é mais não fazer por não poder fazer, mas não fazer porque não deve fazer. Não há moralidade em clonar seres humanos. O cientista precisa trabalhar com liberdade responsável, rumo que a bioética ilumina.
Questão de sobrevivência
Por que a questão ética não é mais só "problema de filósofo", passando a fazer parte do cotidiano das pessoas e até criando um movimento cultural de sensibilização e proteção à vida, a bioética? Reflexões em torno desta pergunta instigante, que une pesquisadores dos campos dos mais variados povoaram a conferência do padre e professor Léo Pessini, da Pastoral clínica e bioética da CNBB durante o congresso. O autor dos livros Morrer com dignidade, Eutanásia e América Latina e Problemas atuais de Bioética lembrou que a bioética, que alguns chamam de disciplina, outros de ciência, e ele prefere chamar de movimento cultural, nasceu nos anos 70, do casamento do conhecimento científico com a ética.
O movimento, contudo, não se limitou aos campos da medicina e da saúde, espraiando para outras áreas até alcançar um sentido muito amplo, até cósmico, de uma consciência de que a tecnologia não pode mais ir em frente sem considerar o sistema de valores humanos. Hoje, além de se preocupar com saúde pública, a bioética trata de genética, problemas populacionais, tecnologias reprodutivas, saúde e bem-estar animal e até saúde ambiental. é um campo de estudos que permite uma interação sem precedentes para questões biológicas, tecnológicas, éticas, de direitos sociais e até métodos de pensamento. Mas, a origem da bioética tem uma ligação íntima com escândalos na área de experimentação humana. Um caso emblemático foi um estudo de sífilis com negros pobres do Alabama, nos Estados Unidos, que de 1932 a 1972 foram mantidos sem tratamento para testar hipóteses científicas. O mais grave é que a penicilina já existia desde 1945. Só em 1972, depois da confissão de um cientista arrependido a um repórter do Washington Post e publicação da reportagem que indignou a sociedade, o governo norte-americano instituiu uma comissão nacional para proteção dos seres humanos nas pesquisas experimentais.
Em 1974, um documento estabelecia os princípios da bioética: autonomia, respeito, consentimento, beneficência, não maleficência, justiça e eqüidade. Esta visão, inspirada na cultura anglo-americano (empirista-pragmática) privilegia o indivíduo e pode resvalar facilmente para o egoísmo. Por isso, o padre Pessini e outros estudiosos estão trabalhando uma perspectiva bioética humanista e comunitária e transdisciplinar para a América Latina, mais voltada para os princípios da solidariedade, generosidade, eqüidade e justiça.
A função da ética é gerar felicidade
O fórum multidisciplinar bioético permite o sentir e discutir juntos, deixando de lado suspeitas de sectarismo e ideologia religiosa e tem o efeito inovador, segundo o professor, de incluir nos debates os valores religiosos. "Afinal, os valores religiosos comandam o nascer , viver e morrer das pessoas", diz Pessini. E é sobre esses três momentos dos seres humanos que se concentra o olhar bioético, preocupado com a velocidade das revoluções científicas. Basta lembrar, que no início da era crista, a população mundial era de 250 milhões e as pessoas viviam de 25 a 28 anos. Em 1900 a esperança média de vida subiu para 28 a 45 anos, saltando, em menos de um século, em 1996, para 75(homens) a 78 anos (mullheres) no chamado primeiro mundo e 60 e 65 anos, no terceiro..
Alterou-se também o conceito de morte aguda do início do século, em que entre adoecer, ir para o hospital e morrer o tempo era de cinco dias. Hoje, a expectativa de sobrevida em casos de doenças graves é de cinco anos. Também só há 77 anos se conhece o aparelho reprodutor humano, o que alterou substancialmente o conceito de sexualidade e família. Com a concepção humana assistida, a lógica se inverteu, com a natureza dizendo não e o ser humano sim. Depois dos bebês de proveta, agora, a preocupação é com a clonagem do ser humano: vai existir um outro você?
O novo conceito de morte (encefálica) que abre o caminho para os transplantes de órgãos é de 1968, tem menos de 30 anos. As discussões bioéticas também incluem o dilema da dignidade no adeus à vida, o conceito de paciente terminal, a eutanásia (suicídio assistido) e distanásia (obstinação terapêutica). Mas, para além do dilema de quando começa efetivamente a vida e até que limite ela deve ser preservada, a grande preocupação das discussões é como salvaguardar o direito à dignidade e qualidade de vida do ser humano. Por isso, para Pessini, não é um exagero se preocupar com novas formas de discriminação originadas com a colonização genética, a cartografia genética e a medicina preditiva. Em um tempo não muito distante, talvez o trabalhador tenha que ouvir: olha, não vou te empregar porque dentro de dois anos você pode adoecer do coração...
"Discutir bioética hoje é questão é questão de sobrevivência", insiste Pessini. "Se o ser humano quer viver bem, sumamente bem, só merecem viver os saudáveis, capazes de produzir? O que fazer então com as crianças, os idosos, os doentes...?". Para contrapor a lógica do utilitarismo a bioética se apresenta com a instância do diálogo. "Não temos receita pronta, mas como ensinou Santo Agostinho, temos que conservar a unidade acima das divergências ideológicas. E, onde existe dúvida, a liberdade...".


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